O Tribunal de Justiça do Piauí reafirmou a legitimidade da Defensoria Pública para intervir como “guardiã dos vulneráveis”, ou custos vulnerabilis, ao suspender uma reintegração de posse de uma área de 11.000 hectares localizada na Fazenda Aroeira Correntinho, no município de Bom Jesus, região sul do Piauí.
O caso, que tramitava na Justiça Estadual, foi remetido à Justiça Federal na última quarta-feira, 19 de novembro, em decisão assinada pelo desembargador João Gabriel Furtado Baptista, reafirmando a legitimidade da Defensoria Pública para intervir custos vulnerabilis, ou seja, na condição de “guardiã dos vulneráveis”, uma forma interventiva de atuação da Defensoria Pública em nome próprio e em prol de seu interesse institucional (constitucional e legal) sempre que a questão envolver direitos individuais ou coletivos de pessoas vulnerabilizadas.
A disputa judicial em questão teve início em 2007, quando uma empresa agropecuária entrou com uma ação possessória para reivindicar a posse de uma área de 11.000 hectares localizada na Fazenda Aroeira Correntinho, no município de Bom Jesus, sul do Piauí. No entanto, os indígenas da etnia Akroá-Gamella, dentre outros territórios, estão situados na localidade Barra do Correntim (ou Correntinho), mesma área reivindicada na ação, e defendem que o território é tradicionalmente ocupado pela etnia, sendo essencial para sua sobrevivência.
A Defensoria Pública do Estado do Piauí (DPE-PI), representada pelo defensor público Daniel Bezerra Lira, então titular da Defensoria Pública no município de Bom Jesus, destacou falhas processuais relevantes no processo. A ausência de citação das pessoas com interesse na demanda por edital e a falta de intimação da Defensoria foram apontadas como violações ao contraditório e à ampla defesa e o devido processo legal.
Além disso, a Defensoria Pública argumentou que a Justiça Estadual não possui competência para julgar a demanda, uma vez que envolve interesses indígenas, matéria de competência exclusiva da Justiça Federal, conforme o artigo 109, inciso XI, da Constituição Federal.
Diversos documentos apresentados pela Defensoria e pelo Ministério Público Federal (MPF) respaldaram as reivindicações da comunidade Akroá-Gamella. Entre eles, destaca-se um estudo técnico que comprova a presença histórica dos indígenas na área e a importância das terras para práticas agrícolas, medicinais e espirituais. A FUNAI, por sua vez, reforçou a necessidade urgente de demarcação, destacando os impactos negativos causados por empreendimentos econômicos na região.
Segundo Daniel Lira, a Defensoria deveria ter sido intimada, desde o início do processo, por se tratar de uma ação que envolve os interesses de pessoas vulneráveis, como as que ocupam a localidade Barra do Correntim.
O desembargador João Gabriel Furtado Baptista, responsável pela decisão, ao analisar o pedido endossado pela Defensoria Pública reconheceu a relevância dos direitos indígenas no caso. Ele determinou a suspensão da decisão que mantinha a posse em favor da empresa agropecuária e a remessa do processo à Justiça Federal, foro apropriado para julgar questões que envolvem direitos de comunidades indígenas.
A decisão também atribuiu efeito suspensivo ao agravo, impedindo qualquer ação de reintegração de posse até o julgamento definitivo do caso. O desembargador destacou que a proteção das terras indígenas é um direito garantido pela Constituição Federal e tratados internacionais, como a Convenção nº 169 da OIT, ratificada pelo Brasil.
Este caso destaca a importância da atuação da Defensoria Pública na defesa dos direitos das comunidades vulneráveis, especialmente em contextos de conflitos fundiários. A decisão obtida pela Defensoria serve como um precedente relevante para futuras disputas envolvendo terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas, reforçando a necessidade de uma abordagem sensível e informada sobre os direitos humanos e comunidades tradicionais.